Um
funcionário público aposentado de Minas se tornou a primeira pessoa na América Latina a receber uma nova terapia
celular que vem revolucionando o tratamento do câncer nos
Estados Unidos e na Europa. Menos de 20 dias após ser submetido ao tratamento
feito a partir das próprias células, o paciente já apresentava remissão da
doença. Vamberto Luiz de Castro, de 62 anos, estava em estado grave, com
linfoma avançado que não respondia a nenhum dos tratamentos convencionais.
Desenganado pelos médicos, com expectativa de vida de menos de um ano, ele foi
submetido em caráter experimental à terapia, no dia 9 de setembro.
A alta de Castro está prevista para este fim de
semana. “Os gânglios no pescoço do paciente desapareceram, ele parou de tomar
morfina para dor, ganhou três quilos, voltou a andar”, contou o hematologista
Renato Cunha, diretor do Centro de Transplante de Medula do Hemocentro de
Ribeirão Preto, um dos responsáveis pela experiência. “Temos todos os sinais de
que o organismo respondeu; ou seja, conseguimos provar o conceito e mostrar que
funciona muito bem.”
Tão
importante quanto a melhora significativa do estado de saúde do paciente é o
fato de a terapia ter sido inteiramente desenvolvida no Brasil, no Centro de
Terapia Celular (CTC-Fapesp-USP) do Hemocentro, ligado ao Hospital das
Clínicas de Ribeirão Preto. Com isso, o País se torna um dos poucos do mundo a
dispor da tecnologia. A expectativa agora é de que o tratamento seja testado ao
longo dos próximos seis meses em pelo menos outros dez pacientes e, no futuro,
esteja disponível gratuitamente no Sistema Único de Saúde (SUS).
Como
funciona
Células de defesa são alteradas geneticamente e se
tornam mais eficazes no combate ao câncer.
O tratamento usado pela
primeira vez em São Paulo é feito com células T (do sistema imunológico) retiradas
do próprio paciente e geneticamente modificadas. A função original dessas
células é combater doenças. No entanto, muitos cânceres conseguem driblar esse
mecanismo de defesa natural do organismo, tornando-se “invisíveis”. “É como se
as células de defesa ficassem cegas para elas que conseguem, então, se
proliferar”, explicou Cunha. “Quando fazemos a alteração genética, as células
de defesa voltam a “enxergar” as células cancerígenas e podem destruí-las.
Os especialistas alteraram
geneticamente as células T, com a inclusão de uma proteína específica que as
torna mais sensíveis a determinados tipos de linfoma. As células alteradas e
cultivadas em laboratório foram inseridas de volta no paciente por meio de uma
infusão.
Com a alteração genética nas
células de defesa, elas passam a reconhecer mais facilmente as células
cancerígenas e conseguem destruí-las. “As células T modificadas passam a se
multiplicar aos milhões no organismo do paciente, fazendo com que o sistema
imune passe a identificar as células cancerígenas do linfoma como inimigos a
serem atacados e destruídos.” Para Dimas Tadeu Covas, hematologista da
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto e coordenador do CTC, desde o
surgimento das terapias de anticorpos monoclonais, há cerca de sete anos, este
é o maior avanço no tratamento do câncer.
“Não tenho dúvidas de que esse
é o futuro do combate ao câncer”, afirmou Covas. “As terapias com anticorpos
monoclonais hoje são rotina no tratamento de vários tipos de câncer; estou
seguro de que vamos seguir o mesmo caminho com a terapia celular.”
Experimental, tratamento depende de novos testes para ser
ofertado no Brasil
A terapia usada com sucesso em
caráter experimental no País já está disponível em alguns países
do mundo, como Estados Unidos, Reino Unido, China e Japão. Ela é usada no
tratamento de leucemias e linfomas. Nos Estados Unidos, o índice de remissão da
doença, mesmo nos casos considerados terminais, é superior a 80% após 18 meses
da infusão.
Por enquanto, o trabalho ainda
está em fase de pesquisa no Brasil. Nos próximos seis meses, outros dez
pacientes devem ser testados. Se o sucesso do primeiro caso se confirmar, a
terapia deverá então cumprir os requisitos regulatórios da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa) para ser oferecida na rede pública.
“Os resultados da terapia
celular para o tratamento das formas mais agressivas de câncer são tão
espetaculares que seu desenvolvimento rendeu o Nobel de Medicina de 2018”,
lembra o hematologista Renato Cunha, um dos principais responsáveis pelo
desenvolvimento da técnica brasileira. O prêmio do ano passado foi para dois
pioneiros das terapias celulares, o americano James Allison e o japonês Tasuku
Honjo.
A patente para a preparação
das células, porém, pertence a dois laboratórios farmacêuticos. Por isso, tanto
nos EUA quanto na Europa, o custo total do tratamento pode chega a US$ 1
milhão (cerca de R$ 4,16 milhões) –, tornando a terapia completamente
inviável no País. Por isso, os especialistas brasileiros decidiram desenvolver
uma tecnologia nacional para a terapia celular, barateando os custos em até
90%.
“Do ponto de vista da pesquisa
médica, é um avanço enorme porque pouquíssimas companhias no mundo detêm
essa tecnologia”, afirmou Tadeu Covas. “Mais do que isso, desenvolvemos a
tecnologia, esse tratamento revolucionário, na área pública e nosso objetivo é
oferecer no sistema de saúde.” Hoje, os tratamentos disponíveis no mundo são
voltados só para linfomas e leucemias. No entanto, já há dezenas de
estudos em todo o mundo e também no Brasil para outros alvos, como os chamados
tumores sólidos.
Professor da USP prepara protocolo para testar nova terapia
Professor titular do Serviço
de Hematologia e Terapia Celular da USP e coordenador médico do Centro de
Transplante de Medula Óssea do Hospital Sírio-Libanês, o
hematologista Vanderson Rocha prepara protocolo de pesquisa para
testar a nova terapia celular na universidade. Ele acredita que o tratamento
tem um grande potencial não só para o tratamento de vários tipos de
câncer, mas também de doenças infecciosas graves, como a Aids.
Por enquanto, porém, um
obstáculo é o custo elevado para o uso da tecnologia. "Só a preparação das
células, tanto nos EUA quanto na Europa, pode chegar a mais de US$ 400 mil.
Esse valor, para a gente, é praticamente impossível, tanto na rede pública
quanto na privada. Então o desenvolvimento de tecnologia nacional é crucial
para termos acesso à terapia e mostra o quanto o investimento em pesquisa é importante",
afirmou Rocha. "Não tenho dúvida de que é o futuro da terapia gênica no
mundo."
Do Estadão
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